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Jean Wyllys

A novela e a série da Globo que cruzam fronteiras

UOL Noticias

16/12/2019 17h52

Diulgação/Globo

Uma pequena trégua na luta contra o governo fascista de Bolsonaro para me dedicar, neste texto, à fruição de duas ficções audiovisuais lançadas recentemente pela Globo e à interpretação de seus significados: "Amor de Mãe", novela de Manuela Dias, e "Eu, Minha Vó e a Boi", de Miguel Falabella. Que a gente vai se entretendo, vai sorrindo, vai cantando, e a gente vai curtindo e também vai se amando senão ninguém segura esse rojão!

"Amor de Mãe" é uma novela fruto de -e que, ao mesmo tempo, representa- um conjunto de valores em crise, os valores que ainda sustentam a decadente dominação masculina. É a história de três mulheres enredadas entre si por suas conflituosas maternidades que se cruzam por diferentes motivos ao longo do tempo, tecendo, assim, para o espectador, uma inteligente e emocionante trama entre os personagens que as circundam.

Lourdes (Regina Casé), Vitória (Thaís Araújo) e Telma (Adriana Esteves) são os pontos de origem de uma colcha que Manuela Dias vai tecendo aos poucos, envolvendo mais o espectador à medida que se revela e seu bonito desenho vai fazendo sentido, completando-se. As três atrizes estão maravilhosas, sem hierarquia nas interpretações. E creio que a amizade entre elas tenha ajudado a dar carisma e verossimilhança às relações entre suas personagens.

Não escolho por acaso a palavra "colcha" para me referir à "Amor de Mãe". É tradição, em muitos e diferentes lugares, mulheres se juntarem para criar colchas enquanto contam (suas ) histórias e mudam (suas) vidas.

Nota-se que, ao fim e ao cabo, todas as linhas ou todos os retalhos presentes ou que ainda serão apresentados pela autora, mesmos os aparentemente a princípio banais e/ou sem encaixe, farão sentido quando a colcha estiver pronta, e terão contribuído para sua beleza final. Sem qualquer deles, a trama resultaria incompleta.

Não se trata de novidade em termos de dramaturgia. Manuela Dias bebeu em diferentes fontes. Não só no roteiro de filmes mais ou menos recentes como "Traffic", de Steven Sorderbergh (2000), e "Babel", de Alejandro Iñarritu (2006), mas, antes e sobretudo, no repertório de tramas escritas por Janete Clair e seus discípulos Gilberto Braga, Ricardo Linhares (que, não por acaso, supervisiona o texto de "Amor de Mãe"), Aguinaldo Silva e Miguel Falabella; que, por sua vez, beberam na fonte dos folhetins do século 19 escritos por José de Alencar, Bernardo Guimarães e Machado de Assis, para citar só três exemplos.

Para acompanhar essa estrutura de narrativa proposta por Manuela Dias, em seu flerte simultâneo com o cinema de arte e a telenovela, José Luiz Vilamarim, em termos de direção artística, explora longos planos sequências, profundidade de campo e câmeras na mão, que respiram, além de recorrer às elipses temporais e à complementaridade -e não tautologia- entre a fala do personagem e o que se mostra ao espectador simultaneamente.

Assim como sua trama, o produto audiovisual "Amor de Mãe" também parece feito como uma colcha. E, nesse sentido, a emocionante trilha sonora –feita principalmente com canções do gênero musical conhecido como MPB– contribui muito para a conexão afetiva do espectador com os personagens e para que aquele compreenda os mundos interiores destes.

A novela é sobre a crise do patriarcado –representada também na crise da televisão como tecnologia da comunicação e da informação e, em se tratando de Brasil, na crise da hegemonia da própria Globo, perdida na encruzilhada entre continuar liberal sem os privilégios conquistados durante a ditadura militar ou ceder ao reacionarismo do governo fascista que ajudou a eleger para manter alguns desses privilégios antigos.

É sobre as novas masculinidades, mas também é sobre o quê da dominação masculina que ainda resiste e vitima as mulheres e LGBTs: do relacionamento abusivo ao estupro, passando por obsessão pela maternidade ou negação desta.

A fotografia de Walter Carvalho é sombria justamente para representar esse lusco-fusco. Capta bem a tristeza de uma cidade que um dia se imaginou maravilhosa, mas que não o é de fato, embora possa vir a ser dia, quando sua gente entender o que diz a canção de Gonzaguinha que está na abertura da novela.

"Eu, Minha Vó e a Boi" –a série do genial Miguel Falabella– também não subestima a inteligência do espectador. Além de abrir um diálogo da teledramaturgia com as narrativas que circulam nas mídias sociais digitais, aproximando suas audiências –a série é baseada numa história contado por meio de posts feito por Eduardo Hanzo em seu perfil no Facebook–, "Eu, Minha Vó e a Boi" dialoga também, em termos de atitude, com a dos artistas da Semana de 22 e do Tropicalismo, e, antes, com a dos ameríndios que devoraram o colonizador para incorporar sua força.

A série é uma crônica triste, mas bem-humorada da família como fonte de ódio (em contraponto a todos os discursos que dizem que ela é – e a representam como – apenas fonte de amor). Contada do ponto de vista do personagem Roblou (corruptela brasileira do nome do ator norte-americano Rob Lowe), jovem de 18 anos que vive no fogo cruzado da rivalidade histórica entre duas vizinhas de porta –Turandot e Yolanda, vividas respectivamente por Arlete Salles e Vera Holtz– e que são, por acaso, suas avós materna e paterna. Roblou é interpretado por um ator jovem que promete ser grande: Daniel Rangel.

Sendo a família –em seus múltiplos arranjos– uma célula da sociedade, o ódio que divide a família de Roblou aparece em cena como uma doença que ameaça se alastrar para todo o corpo social. O ódio é representado também como uma rede subterrânea de dejetos –como o rede de esgotos de um bairro– que pode se romper num valão a qualquer momento, seja na rua, seja na alma.

A trama e o texto de Miguel Falabella são ainda melhores do que os de sua obra-prima "Pé na Cova". Sua capacidade singular de fazer o espectador rir, chorar e pensar numa mesma sequência é admirável. E o elenco é um primor, com destaque para as talentosas atrizes. Stella Miranda, Eliana Rocha, Josie Antello e mesmo a jovem Valentina Bulc se erguem à altura das personagens de Falabella.

Danielle Winits, Alessandra Maestrini e Giovana Zotti estão maravilhosas! O trânsito sutil que fazem da comédia para o drama (às vezes e propositadamente para o melodrama) –sem resvalar em momento nenhum na caricatura– é tarefa de grandes atrizes. E, por falar em grandes atrizes, Holtz e Salles estão soberanas!

Não que os atores e os personagens masculinos sejam ruins ou medíocres. Longe disso. É que Falabella, assim como Almodóvar, Ryan Murphy e outros criadores gays (na verdade, nós gays em geral) temos uma predileção por atrizes e personagens femininos! Trata-se de amor de mãe mais ou menos inconsciente e sutilmente negado a filhos gays e que engendra uma relação complexa entre estes e as mulheres em geral; uma outra maneira de lidar com as performances dos gêneros baseadas na diferença entre os sexos.

"Amor de Mãe " e "Eu, Minha Vó e a Boi" flertam de formas diferentes com o cinema e propõem caminhos distintos para contar conhecidas histórias em meios de comunicação em transformação. A novela flerta com o cinema independente e o documentário. Já a série com o cinema comercial hollywoodiano (um deboche com a maneira como a indústria cultural americana entrou em nossas vidas e com a maneira como resistimos a ela).

Isso põe a série de Miguel –apesar e por causa do pastiche inteligente e bem-humorado que faz das séries e do cinema comerciais americanos (dos planos e enquadramentos ao figurino de Cao Albuquerque, passando pela fotografia)– mais próxima do cinema de Almodóvar.

E ambas – série e novela – estendem o debate sobre o fim das fronteiras de gênero, desta vez entre as narrativas audiovisuais.

Sobre o autor

Jean Wyllys é escritor, jornalista, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, criador, roteirista e apresentador do Cinema em Outras Cores e ativista de direitos humanos. LGBT com orgulho de si, exerceu dois mandatos como deputado federal e é cidadão do mundo.

Sobre o blog

Um blog que trata das diferentes expressões das políticas, identidades, afetos e artes que nascem das ou impactam as relações humanas. E também os espaços e ambientes em que estas se dão.

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