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Jean Wyllys

A imprensa comercial na encruzilhada

UOL Noticias

11/11/2019 10h15

Lula (sua sagacidade e carisma políticos, sua incrível história de vida, seu sólido e resistente partido político, seus governos e sua liberdade) produz –entre os outros impactos na esfera pública brasileira– a opção ou a sujeição da maioria dos jornalistas da imprensa comercial que cobrem os fatos da política à mediocridade intelectual, ao ressentimento e à sabujice.

As raras exceções confirmam essa regra de que, quando se trata de Lula e do PT (sobretudo em relação à identificação destes com a agenda política da esquerda anticapitalista, anti-imperialista e antirracista), os jornalistas da cobertura política da imprensa comercial se esforçam mais para defenderem a realeza do que os próprios reis. Sempre buscando disfarçar essa bajulação todavia. Dessa vez, disfarce é afirmar que existiria uma equivalência entre Lula e Bolsonaro no trato com a imprensa comercial, em particular com os veículos da Globo. Nada mais falso.

Vejamos. Desde que o Supremo Tribunal Federal fez justiça e reafirmou a presunção de inocência prevista como cláusula pétrea na Constituição Federal de 1988 –a única vitória da democracia desde o golpe de 2016 contra a presidenta eleita Dilma Rousseff– a maioria dos jornalistas da cobertura política, em particular os da Globo News, decidiram "discordar" da decisão da Suprema Corte por meio de uma sucessão constrangedora de lugares-comuns e de um sensacionalismo alarmista sobre uma improvável libertação de homicidas e estupradores.

Há apenas duas hipóteses para explicar tal reação diante da decisão do STF: 1) ou a cobertura política está sendo feita por idiotas desinformados, beirando o analfabetismo político; ou 2) (a mais provável) a maioria dos jornalista optou deliberadamente pela desinformação da opinião pública ao saber que a decisão judicial tiraria Lula da prisão onde injustamente esteve nos últimos quase 600 dias– prisão estimulada e festejada por esses mesmos jornalistas e seus veículos à época.

Até mesmo em Proposta de Emenda à Constituição pelo Congresso Nacional como reação à decisão da Suprema Corte já se falou na imprensa comercial. Não, meus caros, o Legislativo não pode revogar a presunção de inocência por meio de PEC. A garantia de não ser considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória é direito individual (Art. 5º, LVII, CF), cláusula pétrea, reitero (e se vocês desconhecerem a etimologia da palavra "pétrea", sugiro que pesquisem em fontes seguras antes de emitirem suas opiniões), logo, não pode ser abolida por emenda.

A passagem da desinformação sobre a decisão do STF para o discurso da falsa equivalência entre Lula e Bolsonaro se deu rápido, uma vez que a liberdade de Lula reacendeu os ânimos da nação, eu diria a vitalidade e a alegria mesmas, drenadas pela política econômica da direita combinada com a política de ódio da extrema-direita no poder. O motivo para essa falsa equivalência foram as críticas contundentes que Lula fez à imprensa comercial, em especial à Globo, em seu potente discurso em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.

Não só a Rede Globo, que, em sua nota oficial, referiu-se às críticas de Lula como "ataques", mas até mesmo "digital influencers" desde sempre tragados pela lógica de mercado e alienados dos embates políticos históricos que forjam a nação brasileira decidiram comparar as críticas de Lula à imprensa comercial aos insultos e tentativas de censura perpetrados por Bolsonaro.

Vamos ser honestos? Lula não "ataca" a imprensa comercial (em especial a Globo). Ele se defende de ataques recorrentes e históricos a ele por parte desta imprensa, à qual, mesmo assim, sempre respeitou quando presidente da República e jamais a boicotou economicamente como o tenta fazer Bolsonaro. Durante os governos Lula e Dilma, a imprensa comercial prosperou economicamente e gozou de toda liberdade, inclusive a de mentir descaradamente ou a de fazer manipulações contra Lula e o PT, apesar dos evidentes benefícios econômicos que estes lhe traziam.

As fontes primárias da história estão aí para provar o que estou afirmando.

Diante dos 580 dias que Lula passou na prisão injustamente; da divulgação da ficha falsa de Dilma; da manipulação descarada do debate eleitoral de 1989; da criminosa associação dos seqüestradores de Abílio Diniz com o PT e dos comentários odiosos de Merval Pereira, Augusto Nunes e Gerson Camarotti –para ficarmos só na ponta do iceberg de, agora sim, ataques vis perpetrados pela imprensa comercial contra Lula e o PT ao longo das últimas quatro décadas– diante desse horror difamatório, as críticas de Lula soam apenas como uma tímida e educada resposta.

A equiparação do ex-presidente a Bolsonaro é injusta e irresponsável porque não está amparada nos documentos nem na memória históricos. Mas não é inocente, embora tente se camuflar numa falsa "isenção da cobertura política".

Lula tem todo o direito –e mesmo o dever!– de ser incisivo nas críticas a uma imprensa que foi capaz de colaborar com sua prisão ilegal e injusta para tirá-lo das eleições e, assim, assegurar a implementação da agenda econômica que beneficia seus donos (mas não os jornalistas que a sustentam; que o digam os "passaralhos" que voaram sobre as redações nos últimos meses), mesmo que, para tanto, fosse preciso a aliança dos donos dessa imprensa com um fascista e as organizações criminosas que lhe sustentavam eleitoralmente.

Em seu maravilhoso livro "Na contramão da liberdade: a guinada autoritária nas democracias contemporâneas", o historiador Timothy Snyder argumenta que o uso de fake news e outras "ficções políticas" por parte de líderes da extrema-direita ou governos autoritários como o chinês e o venezuelano –e também e sobretudo por parte da imprensa comercial e/ou estatal que lhes apoiam direta ou indiretamente– ressuscitou o jornalismo investigativo em uma imprensa independente e plural demandada por um número cada vez mais crescente de pessoas na internet.

De fato, no Brasil, não foram os grandes veículos da imprensa comercial que empreenderam a Vaza Jato, mas, sim, The Intercept, site de jornalismo independente. Só depois, optando pelo melhor caminho diante da encruzilhada em que se encontra a imprensa comercial brasileira, a Folha de S.Paulo se abriu para a denúncia da fraude em que descambou a Lava Jato de Moro e Dallagnol, sendo seguida, de maneira mais vacilante, por outros veículos, exceto pelos da Globo, que insistem na mistificação da Lava Jato.

Sendo assim, o jornalismo na imprensa comercial brasileira (salvas as raras exceções, inclusive na própria Globo, como, por exemplo, o Profissão Repórter e algumas matérias no Fantástico sobre os temas que não estejam diretamente ligados à disputa eleitoral nem à manutenção dos privilégios da elite econômica do país) optou –nessa encruzilhada em que Lula e as reações globais ao neoliberalismo e ao autoritarismo lhe colocam– pelo suicídio por meio do ativismo político-partidário em favor de plutocratas de direita, do flertes com as fake news e da interpelação do ódio de quem ainda lhes resta de audiência.

Uma pena.

Mas talvez só assim possa emergir um jornalismo mais fiel ao objetivo de informar com isenção verdadeira, amparada em fatos, e de se contrapor aos abusos do poder político e econômico.

Sobre o autor

Jean Wyllys é escritor, jornalista, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, criador, roteirista e apresentador do Cinema em Outras Cores e ativista de direitos humanos. LGBT com orgulho de si, exerceu dois mandatos como deputado federal e é cidadão do mundo.

Sobre o blog

Um blog que trata das diferentes expressões das políticas, identidades, afetos e artes que nascem das ou impactam as relações humanas. E também os espaços e ambientes em que estas se dão.

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