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Jean Wyllys

Eu perdôo, mas não me esqueço! (Sobre Bachelet, o vôo da Latam e o cuspe)

UOL Noticias

05/09/2019 15h51

O fatídico dia da cusparada, na votação do impeachment de Dilma (Alan Marques/ Folhapress)

Sim, o mundo democrático está escandalizado com a sociopatia de Bolsonaro. A última prova desta foi seu elogio à ditadura sanguinária de Pinochet, no Chile, e o insulto à memória de uma das vítimas fatais dessa ditadura, o pai da alta comissária da ONU para os Direitos Humanos e ex-presidente daquele país, Michelle Bachelet.

O mundo democrático fora do Brasil tem o direito de se escandalizar com o fascismo de Bolsonaro, afinal, não o conhecia até ele se tornar presidente da República. Já os brasileiros não têm esse direito. E quem, no país, esteja agora se dizendo "indignado" não passa de um hipócrita e/ou oportunista.

Não preciso relembrar aqui os episódios estarrecedores protagonizados por Bolsonaro antes de sua campanha presidencial (para não citar os que ele protagonizou durante a campanha), ao longo de quase três décadas no Legislativo, para provar que não há qualquer novidade em seu comportamento fascista e que ele está apenas sendo o que sempre foi.

Vou só recordar, aos fingidos e oportunistas brasileiros que agora se dizem "estarrecidos" com sua baixeza, mau-caratismo e desumanidade, dois dos episódios que me envolvem diretamente e, nos quais, passei de vítima a algoz sob uma tempestades de prescrições de como deveria ter me "comportado", insultos impublicáveis, inclusive por parte de pessoas LGBTs, e de ameaças de morte (os demais episódios estão contados em "O Que Será", meu novo livro).

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Antes de contar esses dois episódios, gostaria de ressaltar o fato de que, quando cheguei à Câmara Federal, em 2011, Bolsonaro já estava lá havia mais de uma década, fazendo o lobby dos militares, elogiando a ditadura, defendendo a pena de morte e insultando seus colegas.

Eu não inventei Bolsonaro, que fique claríssimo! E antes de ele, contra minha vontade (e recorrendo à homofobia social que a ampla maioria dos brasileiros pratica, mas nega que pratica), usar-me como escada para sua permanência no cenário político, antes disso, ele já havia usado o presidente Fernando Henrique Cardoso (nessa ocasião, eu era conhecido apenas dos meus parentes e amigos na Bahia!). Em declarações à imprensa, Bolsonaro lamentou o então presidente FHC não ter sido morto pelos aparelhos de repressão da ditadura militar.

Dito isso, para desmontar, de cara, o "argumento" desonesto e canalha de quem agora deseja, por vergonha e/ou covardia, colocar o monstro que alimentou na minha conta, vamos aos episódios.

O voo da Latam

Insultado e humilhado com xingamentos homofóbicos perpetrados por Bolsonaro dia sim, dia também na Câmara Federal, diante do silêncio sorridente de meus colegas, jornalistas e operadores das câmeras de televisão; assediado moralmente por ele nos espaços em que nos encontrávamos inevitavelmente; difamado e caluniado na internet por funcionários – e com recursos – de seu gabinete, tudo o que eu queria na vida era me manter longe desse sujeito o máximo que eu pudesse. Recusei inúmeros convites da imprensa para "debates" com ele (não debato nada com alguém do nível desse sujeito!) e cheguei a bater o telefone na cara de um apresentador da Rádio Globo, que, sem que eu soubesse, colocou-o na linha durante uma entrevista comigo.

Eis que, certo dia de abril de 2015, num voo da Latam de retorno para o Rio de Janeiro desde Brasília, estava eu sentado na poltrona do avião, aguardando encerrar o embarque, quando entra Bolsonaro, o último passageiro a embarcar, com a câmera de vídeo do celular ligada, vindo em minha direção.

Ao notar que esse sujeito abjeto, que me torturava psicologicamente todos os dias, viajaria ao meu lado, temendo armadilhas durante o trajeto, retirei-me de mediato do lugar sem dizer uma só palavra e me sentei em outra poltrona. Ainda com a câmera ligada, ele me acusou de "heterofobia".

Depois, postou o vídeo em suas redes sociais e o resultado foi uma avalanche de insultos homofóbicos e ameaças por parte de heteros "indignados" com minha suposta "heterofobia" e observações de colegas sobre como eu deveria ter sido magnânimo e não ter me retirado do lugar onde estaria a pessoa que me torturava psicologicamente todos os dias e que poderia estar preparando algo pior contra mim durante a viagem. Pimenta no olhos dos outros é colírio; nos de uma bicha então…

A Latam até hoje não me explicou como Bolsonaro obteve o número da minha poltrona para montar a armadilha. Essa negligência da empresa aérea põem em risco a privacidade de seus clientes.

A cusparada

O segundo episódio é mais conhecido. Durante a sessão da Câmara Federal que votou o impeachment de Dilma Rousseff, Bolsonaro dedicou seu voto ao torturador da presidenta (o mais terrível dos torturadores da Ditadura Militar no Brasil), e, na sequência, perpetrou mais um insulto homofóbico contra mim. Cuspi em sua cara como resposta!

Mais insultos, uma onda de ameaças de morte e jornalistas na imprensa comercial e inúmeras bichas e sapatões de classe média (e com muita homofobia internalizada) tratando do quanto eu havia sido "mal-educado" e do quanto aquela não era uma "postura de deputado".

Sobre o elogio à tortura e o insulto homofóbico; sobre meus anos sob tortura psicológica perpetrada por Bolsonaro, nenhuma palavra dessas pessoas naquele momento. Aliás, quem foi parar no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados fui eu, que cuspi na cara de um fascista que me difamava, e não ele, que cometeu o crime de apologia à tortura sob os olhos de quase toda a nação.

Sendo assim, brasileiros (e, em especial os brasileiros de classe média e que trabalham na imprensa comercial) que votaram ou não em Bolsonaro, parem de se fingir de chocados com a sociopatia dele! Parem! Mentir para si mesmo é sempre a pior mentira. Nas ocasiões em que vocês puderam deter esse canalha perverso, vocês optaram por converter suas vítimas em algozes, homofóbicos sociais e machistas que são.

Eu perdoo (as bichas)

E eu resolvi recordar esse episódios porque, infelizmente, alguém me marcou na publicação de um site voltado para gays que reproduz a entrevista que concedi à GQ; e, lá, nos comentários, um número considerável de bichas ordinárias, burras, invejosas e com homofobia internalizada que votaram em Bolsonaro e, agora, são chamadas de "lixo" por ele, alternava o insulto contra mim à tentativa de justificar o voto no monstro.

Eu poderia dizer que não tenho qualquer pena do que vai ocorrer com esses gays, mas eu não estaria sendo honesto comigo.

Tenho pena sim. Sei que a tentativa de colocar Bolsonaro na minha conta é, além de desonestidade intelectual, um esforço para deter a culpa que lhes corrói e aplacar o medo do que já está pesando sobre eles. Sendo assim, sim, eu tenho mais que pena: de antemão digo que as perdoo. Como perdoo todos os que me insultaram e ameaçaram quando aconteceram os dois episódios. Contudo, perdoar não quer dizer esquecer!

A escritora estadunidense Toni Morrison, falecida no início deste ano, diz, em um texto curto mas profundo sobre o fascismo, escrito em 1995, que este não "limparia" tão facilmente seu trabalho sujo se pessoas que são suas vítimas não se dispusessem à tarefa de fazer essa "limpeza".

Gays, lésbicas e trans que, mesmo sabendo de tudo, atacaram-me injustamente quando eu estava apenas lhes defendendo e depois votaram em Bolsonaro, esses LGBTs permitiram que ele lhes usasse para dizer que não é o homofóbico que é; permitiram que ele "limpasse" a sua sujeira. Encarar essa verdade e tentar mudar doravante será melhor para as suas almas do que seguir mentindo para si mesmos. O mesmo eu recomendo aos héteros arrependidos de seu voto.

Ah, sim, aceito as desculpas mesmo que elas não venham. Mas não vou me esquecer!

Sobre o autor

Jean Wyllys é escritor, jornalista, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, criador, roteirista e apresentador do Cinema em Outras Cores e ativista de direitos humanos. LGBT com orgulho de si, exerceu dois mandatos como deputado federal e é cidadão do mundo.

Sobre o blog

Um blog que trata das diferentes expressões das políticas, identidades, afetos e artes que nascem das ou impactam as relações humanas. E também os espaços e ambientes em que estas se dão.

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