A hipocrisia homofóbica da porta-voz da “República de Curitiba”
A Gazeta do Povo –principal jornal do Paraná e alto-falante da Operação Lava Jato– decidiu não só militar contra a criminalização da homofobia, garantida em decisão recente do Supremo Tribunal Federal, como também conquistar novos assinantes para seus conteúdos por meio de uma campanha hipócrita.
Em longo e-mail recheado de ofertas a atuais e futuros assinantes, o departamento de marketing e relacionamento do jornal de Curitiba chama a criminalização das condutas e discursos homofóbicos de autoritarismo "orwelliano" (numa referência descabida à –e que distorce a– ficção de George Orwell sobre uma sociedade distópica vigiada, controlada e punida pelo "Big Brother") e critica duramente o STF por, segundo o jornal, "criar mais um tipo penal".
Esse proselitismo poderia ser respeitado de alguma forma se não viesse de um jornal que apoia abertamente a criação de novos tipos penais proposta pelo "pacote anticrime" de Sergio Moro e procuradores da Lava Jato, arautos da ampliação e fortalecimento do Estado Penal que descarta a presunção de inocência prevista na Constituição Federal, criminaliza a política de esquerda e encarcera em massa e extermina os pobres. A Gazeta do Povo expressa, portanto, uma hipocrisia homofóbica.
Todas as pessoas minimamente bem-informadas e de bom caráter –ou seja, relativamente vacinados contra as fake news– sabem qual é a minha posição em relação à criminalização da homofobia. Não creio que, do ponto de vista da política pública, transformar o discurso homofóbico –insultuoso, humilhante e ultrajante da dignidade humana– em crime e prever penas duras de prisão para quem o profere em público seja a solução para esse mal. O que não quer dizer que eu não seja a favor do agravamento das penas para as violências duras –lesão corporal, tortura psicológica e/ou física, tentativa de homicídio e homicídio– quando motivadas por preconceitos e aversões às pessoas LGBTs e seus modos de vida. Da mesma forma que concordo que sejam agravadas as penas das violências físicas motivadas por racismo, do antissemitismo ao ódio a pessoas de pele preta, passando pela islamofobia e pela aversão aos povos indígenas e asiáticos.
Porém, durante o julgamento do STF que resultou na criminalização da homofobia, coloquei-me claramente ao lado dos que advogavam por esta –em especial do advogado e brilhante jurista Paulo Iotti– pelo fato de concordar com eles de que existe uma omissão do Legislativo em relação a um mandado constitucional, já que não é possível dar à homofobia um tratamento legal diferente do que é dado ao racismo da cor da pele –que é criminalizado, assim como o antissemitismo.
Ou seja, por mim, nenhum discurso de ódio seria punível com prisão (mas, sim, com justas multas pagas às vítimas ou a instituições que trabalham na promoção da dignidade humana e cidadania plena dos coletivos com os quais estas se identificam ou são identificadas). Mas, já que existe uma a lei que pune o discurso racista e antissemita com a pena de prisão, a homofobia não pode ter tratamento diferenciado; do contrário, teríamos hierarquia de opressões e violências que não podem ser hierarquizadas pelo Estado Democrático de Direito.
Esta minha posição está em completa consonância e coerência com a defesa que faço –e fazia abertamente quando deputado federal– do Estado Penal mínimo, que se traduz em políticas de descriminalização do aborto (ou seja, nenhuma pena de prisão para a mulher que aborta); descriminalização da prostituição (nenhuma pena de prisão para o adulto de qualquer gênero consciente e capaz que faça sexo em troca de dinheiro –e a prostituição nesse sentido não pode jamais ser confundida com a escravidão ou exploração sexual de adultos ou crianças); e descriminalização do porte de qualquer droga para consumo pessoal e recreativo (nenhuma pena de prisão para qualquer adulto que seja flagrado nessa situação).
Justamente por isso, oponho-me desde sempre ao populismo penal e ao (agora sim!) autoritarismo do "pacote anticrime" proposto por Moro e Lava Jato que deseja criminalizar a política, e não combater de fato as múltiplas expressões da corrupção. Tanto isso é verdade que o tal "pacote" não alcança a corrupção praticada pelo mercado financeiro e bancos nem a corrupção na qual os próprios membros da Lava Jato se envolveram (o abuso de conduções coercitivas, as prisões preventivas como prática de tortura psicológica para obtenção de delações premiadas e a condenação sem provas de pessoas como meio de sabotar o processo eleitoral em favor de facções políticas), de acordo com as denúncias de The Intercept e outros órgãos de imprensa.
Ou seja, eu tenho, ao contrário do jornal da "República de Curitiba", moral para criticar a criminalização da homofobia, já que me oponho às outras criminalizações, inclusive a da política, e proponho solução (novas políticas de distribuição de renda, educacionais, de segurança e acesso à cultura) para males como a violência urbana, o abuso de drogas e a corrupção que vá às suas raízes ou causas históricas e culturais em vez de ficar propondo contenção ad infinitum de seus efeitos.
A Gazeta do Povo de Curitiba não tem essa moral! Se sua oposição à criminalização da homofobia fosse realmente sincera, honesta intelectualmente e fundada em princípios do liberalismo clássico, como tenta fazer crer seu e-mail, o jornal não seria o porta-voz dessa (agora sim!) distopia orwelliana proposta por Sergio Moro, que, em uma de suas últimas e sempre constrangedoras falas públicas, defendeu a prática de tortura.
Por que a Gazeta do Povo, que está se vendendo como amante da liberdade, não disparou para seu mailing uma crítica ao ministro da Justiça de Bolsonaro por esse atentado às liberdades civis?
Deixo aqui outras perguntas ao jornal da "República de Curitiba", mesmo correndo o risco de este veículo me atacar com fake news em retaliação a esta crítica à sua hipocrisia homofóbica:
A Gazeta do Povo teria a coragem de defender explicitamente em e-mail para seus leitores a "liberdade" dos antissemitas de insultarem publicamente os judeus e negar o Holocausto? Tería a pachorra de defender que as torcidas de futebol sigam chamando jogadores negros de "macacos" e lhes atirando bananas em campo?
Se a resposta for não, então talvez seja a hora de o jornal rever sua posição em relação à "liberdade" dos homofóbicos de continuar nos insultando e nos matando. E se a Gazeta do Povo deseja de verdade um Estado menos penal e punitivista, deveria começar criticando a Lava Jato.