Que gay pode passar da dor à glória?
[Se você não deseja saber qualquer informação sobre o novo filme de Pedro Almodóvar antes de vê-lo, pare a leitura deste texto agora mesmo]
Lembro-me claramente do dia em que, pela primeira vez, ouvi um insulto homofóbico na vida: "Você é viado ou estudado?", perguntou-me, com rispidez, um homem adulto que bebia em companhia de outros na venda de "seu" Deraldo, na Baixa da Candeia, aonde eu fora comprar pães a pedido de minha mãe. O motivo da pergunta insultuosa e dos risos de escárnio que ela suscitou entre os adultos presentes foi o fato de eu ter feito uma concordância de número correta durante o pedido: "Seu Deraldo, eu quero seis pães!". Mas seguramente o tom da minha voz e meus trejeitos "afeminados" — dos quais eu era completamente inconsciente até então — contribuíram para aquela humilhação pública.
Eu tinha apenas seis anos de idade. Não fazia qualquer ideia do que era ser "viado", mas entendi, ali, que não deveria ser "viado" porque ser "viado" seria motivo de mais humilhações como aquela. Voltei para casa com meu corpo frágil de criança tremendo. Minha mãe me achou pálido. Perguntou-me se havia acontecido alguma coisa e eu lhe respondi que não, pois temia que ela me culpasse pelo ocorrido; afinal, em minha percepção imediata, o motivo da humilhação que passara estava comigo mesmo. Minha vida nunca mais seria a mesma depois desse episódio, para bem e para mal.
Dediquei-me à escola quando, um ano depois desse ocorrido, comecei a frequentá-la, ainda que, lá, os colegas também fossem bastante cruéis em relação à minha diferença. Não por caso, a única colega que fiz nesse primeiro ano escolar era um menina com deficiência física chamada Rita, da cidade de Aramari e também vítima do bullying.
Até minha mãe me dizer, com todas as letras, que viver de desenhar não era coisa pra gente pobre como nós, eu sonhava ser artista plástico. Passava horas desenhando no chão do quintal com um palito de fósforo, fantasiando estórias, principalmente com heroínas. Vez em quando, mainha me dizia: "Eu não sei a quem você puxou; a mim é que não foi!". Ou dizia, na minha frente, a alguma de minhas tias ou às mulheres em companhia das quais lavava roupa no rio: "Eu não sei a quem esse menino puxou; é especial; vive de sonho".
Dali em diante, além de trabalhar um período do dia pra ajudar nas despesas de casa, mergulhei nos estudos e na leitura de livros; à noite, assistia a telenovelas nas casas dos vizinhos; passei por um colégio interno no ensino médio e me formei jornalista na Universidade Federal da Bahia. Concluí um mestrado em Letras e Linguística. Publiquei meu primeiro livro aos 20 e poucos anos. Tornei-me famoso por conta de um reality show. E me elegi três vezes consecutivas deputado federal.
Em resumo, essa é a minha história. Mas é também mais ou menos a história que Pedro Almodóvar conta em seu novo e autobiográfico filme "Dor e Glória", ao qual assisti aos prantos. É também mais ou menos a história que o escritor francês Édouard Louis, de apenas 26 anos, conta em seu best-seller — também autobiográfico — "O fim de Eddy". É mais ou menos a história do filósofo francês Didier Eribon, narrada em "Regresso a Reims". É mais ou menos a história de Gianni Versace. É mais ou menos a história de meus amigos Flávio, Fred, Geni, Fábio, Sílvio, André, Marcos, Erick, Edu, Celso, Samuel, Ed, Guilherme, Nilton, Vinícius e de outros tantos amigos gays assumidos e que sobreviveram aos múltiplos golpes da homofobia, tornando-se pessoas bem-sucedidas, ainda que com algumas sequelas no corpo e/ou na alma.
Sim, muitos não sobrevivem à homofobia. Quando não se encerram em armários, onde correm o risco de se metamorfosearem em pessoas horríveis que reproduzem o mal de que são vítimas, quando isso não acontece, ou cometem suicídio ou são assassinados precocemente, como foi o caso do menino Alex, de Rio das Pedras, cujo pai dilacerou seu fígado apenas porque o garoto de apenas oito anos de idade gostava de dança do ventre e de lavar louça. E nunca é pouco lembrar que esse episódio ocorreu quando o nosso atual presidente da República e então deputado federal dizia aberta e publicamente que homossexualidade é "falta de porrada".
Mas, voltando aos que sobrevivem e têm sucesso em suas vidas (e sucesso não quer dizer fama!); voltando à dor e à glória de que trata Almodóvar, perguntei-me, ao final do filme, como é possível que gays de idades e países tão diferentes possam ter tanto em comum em suas histórias, ao ponto de todas parecerem uma mesma história com pequenas variações.
A certa altura de "Dor e Glória", o personagem Salvador, vivido magistralmente por António Banderas, diz para sua mãe já idosa (e cuidar das mães idosas é outra característica comum dos homens gays, mesmo quando estas lhes rejeitaram na infância ou adolescência): "Sabe, mamãe, quando a senhora me dizia, em minha infância, que eu era um menino especial e que não havia puxado à senhora, eu sabia que a senhora não dizia isso com orgulho". O orgulho só viria muito mais tarde, como no caso da minha mãe. E a mãe de Salvador também era uma lavadeira de rio.
Ora, a única resposta possível para a existência dessa constante — dessa repetição — no tempo e no espaço é a homofobia. Esta é um fundamento de todas as culturas nascidas das — ou influenciadas pelas — religiões abraâmicas (que remontam ao mesmo patriarca Abraão): o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Não é de se estranhar, portanto, que sua reprodução em diferentes línguas e instituições como a família, a igreja e a escola construam histórias e constituam sujeitos tão parecidos; que produzam males tão semelhantes e que despertem formas parecidas de resistência a ela.
A homofobia é gêmea do sexismo. Não há patriarcado sem uma nem outro. Ambos produzem muita dor, é verdade, mas as múltiplas resistências e enfrentamentos que nós, gays assumidos e orgulhosos e mulheres feministas, cis e trans, temos feito a esses males que nos encerram em histórias parecidas podem também nos levar à glória.