Sobre como uma fascista lésbica é vítima da homofobia que sempre negou
UOL Noticias
17/12/2019 19h41
Karol Eller e Jair Bolsonaro em 2016
Ao saber da agressão homofóbica contra a youtuber bolsonarista Karol "Eller" em um quiosque na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, inevitavelmente me veio à cabeça o dito espanhol "cría cuervos y te sacarán los ojos". Lésbica, Karol fez e faz parte do time de LGBTs que se prestaram e se prestam a passar pano ou a negar a homofobia de Bolsonaro e da extrema-direita brasileira, e a atacar o movimento LGBT, negando a existência da homolesbotransfobia no Brasil e acusando as pessoas que denunciam essa violência de "vitimistas". Mas a vida é real e é de viés, e, por isso, assim como o vereador Fernando Feriado e o humorista Evandro dos Santos – dois outros homossexuais cheios de homofobia internalizada e que uivaram e uivam com os lobos homofóbicos na esperança vã de que estes lhes poupem – Karol aprendeu da pior maneira que, sim, a homofobia existe e que os homofóbicos estão se sentindo mais livres para perpetrar violências contra LGBTs desde que a extrema-direita se tornou hegemonia política e Bolsonaro venceu as eleições no Brasil.
No rastro da notícia dessa agressão, identifiquei em circulação nas mídias sociais, de imediato, duas formações discursivas relacionadas entre si:
- Políticos da extrema-direita e bolsonaristas – que, assim como o próprio Bolsonaro, sempre negaram a existência de homofobia ao mesmo em que a perpetravam de diferentes formas – cobrando solidariedade dos ativistas LGBTs em relação a Karol; uma solidariedade que esta nem eles nunca tiveram em relação às vítimas da homofobia, ao contrário;
- Fake news apócrifas acusando o movimento LGBT e a esquerda de serem os responsáveis pela violência homofóbica que desfigurou o rosto da youtuber lésbica.
Eu tenho estudado, na universidade de Harvard, o fenômeno das fake news e sua articulação com os discursos de ódio. Impressiona-me ainda a velocidade com que mentiras e distorções que favorecem a extrema-direita são postas em circulação nas mídias sociais. Ainda ontem em conferência na UQAM (Universidade de Montreal, no Quebec), analisando as fake news contra Marielle Franco divulgadas horas depois de seu assassinato, ressaltei o quanto os objetivos das fake news são (re)conciliar seus receptores com seus preconceitos, ódios e medos; impedir a conscientização e drenar a empatia.
No caso das fake news em relação à agressão contra Karol "Eller", aos objetivos acima mencionados, soma-se o de esconder a evidente motivação homofóbica da violência física que ela sofreu. A produção e a circulação imediata dessas fake news visam não só negar, para a base eleitoral de Bolsonaro, a existência da homolesbotransfobia, mas também criminalizar o movimento político que a denuncia e enfrenta.
Trata-se da estratégia mais perversa contra as pessoas LGBTs: ao mesmo tempo que negam a homofobia, acusando o movimento LBTQ de "vitimista" ou "gayzista" por denuncia-la, os bolsonaristas a perpetram de diversas maneiras. Porém, quando uma das vítimas dessa violência é um lésbica cheia de homofobia internalizada, ao ponto de ela mesma acusar ativistas LGBTs de "vitimistas" e se aliar ao bolsonarismo, servindo de pano para "limpar o trabalho sujo do fascismo", como disse a escritora Toni Morrison; quando isso acontece, desnudando a violência homofóbica antes negada, o sistema de produção e divulgação de mentiras dos bolsonaristas coloca imediatamente em circulação nas redes sociais digitais fake news responsabilizando o movimento LGBTQ e a esquerda pela agressão à lésbica que lhe serve de pano.
Não me espantará se a própria vítima aderir às fake news. Em post, ela disse que está sem condições de falar sobre o assunto, já que seu rosto está desfigurado pela violência. Karol já expressou antes e claramente sua homofobia internalizada ao se identificar com o discurso de um candidato como Bolsonaro. Se ela aderir às fake news acerca da violência que sofreu para não dar razão aos ativistas e para sustentar sua posição de cabo-eleitoral de Bolsonaro, não será uma surpresa! O fato de ser gay, lésbica ou trans não livra uma pessoa de ser mau-caráter e só pensar em si.
Esse caso é exemplar da dupla e simultânea violência produzida pela homofobia: por um lado ela é perpetrada, na maioria das vezes com uma violência chocante, e, por outro, ela busca se esconder em discursos e fake news que não só negam sua existência, mas, principalmente nos casos em que não pode se disfarçar, tentam culpar o movimento que se organiza contra ela, a homofobia.
E quase sempre a homofobia sai vitoriosa porque encontra, entre as suas vítimas em potencial (ou, em algumas situações, na vítima em particular ou nos familiares desta em caso de homicídio), os cúmplices desse ardil.
A homofobia é uma violência perpetrada sobre os nossos corpos por diferentes dispositivos e instituições, mas que nos afeta por dentro, sujeitando-nos desde a mais tenra infância e nos impedindo desde muito cedo a nos identificar com nós mesmos ou, dito de outra maneira, impedindo-nos de estar em sintonia com nosso desejo sexual ou com a percepção que temos de nós mesmos em se tratando das performances de gênero; fazendo-nos introjetar, desde crianças, um ódio mais ou menos inconsciente de nós mesmos e, portanto, uma desidentificação com aqueles que são como nós.
A homofobia se manifesta na forma do insulto e/ou violência física por parte de pessoas heterossexuais e cisgêneros contra nós LGBTs, mas também na vergonha de si cultivada por muitos homossexuais e transgêneros, em muitos casos até mesmo depois da inevitável "saída do armário".
A homofobia também se manifesta no silenciamento e na difamação de suas vítimas e/ou de quem luta contra ela. E, por fim, expressa-se na tentativa de impedir, por meio de mentiras e fake news, a identificação de LGBTs como o movimento político de emancipação e igualdade.
Só a saída do armário (assumir-se!), o orgulho de si, o conhecimento e a solidariedade entre nós podem nos salvar desse horror.
Seja qual for a postura de Karol "Eller" – se vai despertar ou se seguirá uivando com os lobos – deixo aqui minha solidariedade a ela, a solidariedade que ela nunca teve em relação a mim nem a outras vítimas da homofobia alimentada pelo governo que ele ajudou a eleger.
Sobre o autor
Jean Wyllys é escritor, jornalista, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, criador, roteirista e apresentador do Cinema em Outras Cores e ativista de direitos humanos. LGBT com orgulho de si, exerceu dois mandatos como deputado federal e é cidadão do mundo.
Sobre o blog
Um blog que trata das diferentes expressões das políticas, identidades, afetos e artes que nascem das ou impactam as relações humanas. E também os espaços e ambientes em que estas se dão.