O tempo e a pele da justiça
UOL Noticias
05/12/2019 11h48
MBL com Eduardo Cunha, em maio de 2015, antes de o pedido de impeachment de Dilma Rousseff ser protocolado – Crédito: Facebook/MBL
Confio no tempo desde que o vi pela primeira vez –ou desde sua primeira aparição em minha vida– quando eu ainda era uma criança. Notei, já àquela época, que, mesmo demorando às vezes, o tempo sempre tece ou recompõe a pele da justiça, quase sempre com o pêlo dos injustos.
Em sessão da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das fake news, a deputada do PSL Joice Hasselman disse à deputada Carla Zambelli, também do PSL, que o presidente da República, Jair Bolsonaro, perguntou-lhe se esta fora prostituta na Espanha. Na mesma sessão, o deputado Nereu Crispin, do mesmo PSL, elencou uma série de correligionários que caluniam, assediam, ameaçam e difamam sua família.
Já na Assembleia Legislativa de São Paulo, o deputado estadual Arthur "Mamãe Falei" (sim, é esse nome constrangedor mesmo), também do PSL, fez provocações com insultos e gestos obscenos contra um colega de parlamento. "Mamãe Falei" é um dos líderes do MBL, a organização que abriga o vereador Fernando Holliday, que, após visita aos EUA custeada pelo Departamento de Estado Americano, descobriu –oh!– que a homofobia existe na direita e contou isso em artigo na Folha de São Paulo (tão jovem na política, mas já tão cínico!)
O tempo começa a mostrar a verdadeira face dos lobos que, fantasiados de ovelhas (de "honestos", "cidadãos de bem", "defensores da família", "cristãos devotados" e "recatadas e do lar"), disseminaram o ódio e as mentiras que adoeceram a democracia e a sociedade brasileiras. E a grande ironia dessa justiça tecida pelo tempo é que esta é feita dos fios dos pêlos dos lobos disfarçados de ovelhas que passaram a atacar outros lobos disfarçados de ovelhas no afã de devorar mais carne. E assim toda a alcateia começa a se mostrar em sua feracidade e violência antes disfarçadas.
O MBL é uma organização criminosa. Uma alcateia de lobos famintos. Seus membros –financiados pelos artífices do golpe parlamentar contra a presidenta eleita Dilma Rousseff– emergiram na esfera pública divulgando mentiras e teorias conspiratórias em massa; caluniando pessoas públicas; assediando e insultando violentamente políticos (até mesmo em hospitais e cemitérios) para produzir vídeos constrangedores que eram compartilhados em redes sociais digitais numa velocidade que só o dinheiro sujo poderia proporcionar.
O MBL fez emboscadas contra pessoas em aeroportos e estúdios de rádio; usou de violência física contra outras em livrarias e exposições de arte; ameaçaram organizadores de eventos em universidades; e demonizaram pessoas com fake news de tal forma que estas passaram a correr risco de morte aonde quer que fossem.
O MBL usou mentiras homofóbicas –recorreu à homofobia!– para criar um pânico moral em torno da exposição "Queer Museu", acabar com a carreira do ator e dançarino Wagner Schwartz e desprestigiar a artista plástica Adriana Varejão. A homofobia presente nessa página infeliz da nossa história recente –na qual Fernando Holliday e seu MBL figuram como protagonistas– é a mesma homofobia que resulta na alarmante estatística de mais de 300 LGBTs assassinados por ano no Brasil.
O MBL se aliou ao corrupto Eduardo Cunha –com direito a foto sorridente para posteridade– e montou, na frente do Congresso Nacional, um acampamento falso, de onde partiram tiros de revólver contra a marcha de mulheres negras na Esplanada dos Ministérios.
Os lobos do MBL deram origem a uma nova alcateia: o PSL, partido que se ergueu cometendo os crimes de calúnia, injúria e difamação. Seu candidato (Jair Bolsonaro) –hoje presidente da República– mentiu descaradamente na bancada do Jornal Nacional, apelando à homofobia social ainda vigente no Brasil (homofobia que era perpetrada como plataforma de campanha eleitoral por todos os candidatos do partido em todo país). Do PSL é o deputado que se elegeu difamando Marielle Franco depois de esta ter sido barbaramente assassinada por sicários intimamente ligados à família de Bolsonaro e quebrando uma placa em sua homenagem.
Ora, ainda estamos por entender como a maioria do rebanho de ovelhas eleitoras brasileiras pode escolher lobos tão mal disfarçados para guia-la. Como essas ovelhas não notaram pele tão tosca escondendo os predadores? Sim, muitas ovelhas são ingênuas e crédulas, e por isso incapazes de notar o perigo disfarçado. Mas outras talvez abriguem, no fundo de si mesmas, um lobo interior ou uma vontade enorme de uivar com os predadores, e, por isso, não se importem que todo o rebanho seja destroçado pelos lobos de verdade.
Assistir à sessão da CPMI das fake news e ver os membros do PSL acusando uns aos outros dos crimes que sempre soubemos que eles perpetraram é como ver lobos se atacando ante o rebanho de ovelhas perplexas. Saber que "Mamãe Falei" vai parar no conselho de ética por causa de sua conduta predatória é ver um lobo deixando cair seu tosco disfarce de ovelha. E ler Fernando Feriado na Folha de S.Paulo é ver o desespero da ovelha escrota identificada com o lobo mais feroz tentando sobreviver ao mal a que ela mesma expôs o rebanho.
Confio tanto no tempo! Apesar das ovelhas já destroçadas e daquelas que estão feridas, acredito que o tempo está agindo em favor do rebanho e tecendo, aos poucos, e com os pêlos que um lobo está arrancando do outro, a justiça que se concluirá e estenderá sobre nós.
Sobre o autor
Jean Wyllys é escritor, jornalista, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, criador, roteirista e apresentador do Cinema em Outras Cores e ativista de direitos humanos. LGBT com orgulho de si, exerceu dois mandatos como deputado federal e é cidadão do mundo.
Sobre o blog
Um blog que trata das diferentes expressões das políticas, identidades, afetos e artes que nascem das ou impactam as relações humanas. E também os espaços e ambientes em que estas se dão.