Três maneiras de tocar no assunto
UOL Noticias
15/10/2019 13h04
Em entrevista para Bial, Ícaro Silva e Jesuíta Barbosa falam sobre sexualidade (Reprodução)
1. Repercutiram bastante as entrevistas em que os atores Ícaro Silva, Jesuíta Barbosa e Reynaldo Gianecchini falaram publicamente de suas identificações sexuais. Os dois primeiros falaram ao "Programa do Bial" e o segundo à Revista Ela.
Jesuíta Barbosa apenas reiterou com mais orgulho a homossexualidade que nunca escondeu desde que se tornou conhecido do grande público a partir do filme "Tatuagem", de Hilton Lacerda. Ícaro Silva conjugou dois orgulhos – os de ser gay e ser negro – em sua saída definitiva do armário durante a entrevista: "Sou bicha preta!", ele disse. Importante ressaltar que o racismo acrescenta outra miséria à vida dos gays, lésbicas e pessoas trans negras.
Os dois atores – Ícaro Silva e Jesuíta Barbosa – integram o time de talentosíssimos, inteligentes e politizados artistas da nova geração que não estão dispostos a abrir mão do que são de verdade ou a fazerem gestão esquizofrênica de suas vidas para alcançarem sucesso no mundo das artes e/ou na indústria cultural. Ambos têm consciência de que devem a liberdade e a possibilidade de viverem seus desejos à luta travada por LGBTs como eles e que vieram antes deles; e, por isso, fazem o que podem por essa luta sem renunciar aos seus projetos pessoais.
Já Reynaldo Gianecchini pertence à geração de atores e atrizes convencidos pela homofobia liberal (e internalizada por elas e eles) de que suas orientações sexuais não são "problema dos outros" e devem ser vividas apenas entre quatro paredes. Por isso, é parcial e envergonhada sua saída do armário na entrevista à revista Ela.
Reynaldo Gianecchini (JC Pereira/AgNews)
2. Gianecchini é uma vítima das múltiplas expressões da homofobia. Nota-se há muito tempo que ele nunca esteve nem está preparado para enfrentar esse mal. Para se ter uma ideia dessa sua incapacidade, basta dizer que, enquanto a homofobia de jornalistas medíocres e heterossexuais ressentidos policiava suas relações íntimas, expondo-o e o identificando publicamente com o "grupo difamado" de LGBTs, Gianecchini tentava se defender desse policiamento homofóbico e escroto negando, de maneira igualmente homofóbica, os desejos e as relações que inevitavelmente o ligavam a esse grupo.
Esse ciclo neurótico provavelmente produz danos não só em sua saúde emocional, mas também em seu talento. Gianecchini gasta metade de sua força para parecer, na vida (e não nos palcos), aquilo que não é. Já Ícaro Silva e Jesuíta Barbosa sabem que não precisam parecer, na vida, o que não são para serem amados e fazerem sucesso.
O lugar onde um ator – ou atriz – deve viver o que não é, é a sua arte (expressa no teatro, cinema ou televisão). Mas o artista também pode viver o que é ou próximo do que é em sua arte, principalmente se seu objetivo for refletir sobre algo em si mesmo que é comum a outras pessoas e que serve à opressão destas. É possível, portanto, que um ator ou atriz fale de si mesmo por meio de outros com os quais tem algo em comum. O talentoso e premiado ator Leonardo Netto está fazendo isso, por exemplo.
3. Seu monólogo "Três maneiras de tocar no assunto" – em cartaz no Teatro Poerinha, no Rio de Janeiro – vem impactando e emocionando plateias e arrancando elogios entusiasmados da crítica teatral por apresentar vários personagens e o próprio ator num trânsito entre as identidades e as alteridades LGBTs.
Leonardo Netto me procurou meses antes de meu exílio e me pediu autorização para usar, nessa peça, os discursos que proferi na Câmara dos Deputados. Autorizei de imediato. Não apenas porque somos amigos e confio nele, mas porque Netto e eu acreditamos que os textos que desmascaram as opressões e ensejam as liberdades devem ser ouvidos fora dos espaços para os quais foram feitos.
Além disso, seria um desafio ver minhas falas (re)encarnadas por outra pessoa, por um ator que as articularia em um contexto que ampliaria sua potência, dirigido por outro artista talentosíssimo, que é Fabiano de Freitas. Infelizmente não posso ver o resultado. Mas a repercussão e os comentários sobre "Três maneiras de tocar no assunto" me dizem que Netto e Freitas fizeram uma obra-prima.
Quando uma pessoa gay, lésbica ou bissexual decide sair do armário neste mundo (ou seja, quando ela decide apresentar e viver doravante sua orientação sexual, para si mesma e para os demais, com orgulho), esta decisão não diz respeito só a esta pessoa, mas a todas as outras pessoas que, como ela, foram encerradas num armário pelas múltiplas e ubíquas expressões da homofobia. O armário não é um problema individual, mas coletivo. Cada homossexual ou bissexual que se liberta, afrouxa, mesmo que não queira, mesmo que não saiba disso, as correntes que aprisionam outros.
Sobre o autor
Jean Wyllys é escritor, jornalista, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, criador, roteirista e apresentador do Cinema em Outras Cores e ativista de direitos humanos. LGBT com orgulho de si, exerceu dois mandatos como deputado federal e é cidadão do mundo.
Sobre o blog
Um blog que trata das diferentes expressões das políticas, identidades, afetos e artes que nascem das ou impactam as relações humanas. E também os espaços e ambientes em que estas se dão.