O olho da “questão Ciro”
UOL Noticias
16/09/2019 10h10
Ciro Gomes: pautas identitárias viraram tabu para o político
Ciro Gomes está com a libido retida naquela que Freud chama de "fase anal" do desenvolvimento psicossocial. Contém (nos dois sentidos desta palavra) uma misoginia que, todavia, foge do controle.
Sua tentativa de desqualificar a filósofa Márcia Tiburi –que foi candidata ao governo do Rio de Janeiro pelo PT nas últimas eleições– por meio de uma referência que esta faz ao cu em uma de suas muitas falas disponíveis na internet, essa tentativa de desqualificação falso-moralista é mais que uma grosseria típica de um machista inseguro diante do brilhantismo intelectual de uma mulher. Trata-se de um sintoma: os machos-adultos-brancos-sempre-no-comando estão neuróticos (no caso de alguns, psicóticos) com as conquistas de espaços de poder por parte das mulheres em geral, de LGBTs e de negros.
Em que pesem as enormes diferenças entre Bolsonaro e Ciro Gomes, sobretudo o verniz de "homem ilustrado" que o domínio dos conceitos de economia conferem a este último, a verdade é que ambos têm, em comum, essa ansiedade sexual diante do arruinamento do patriarcado sexista e heteronormativo.
Prestem bem atenção: com uma miríade de candidatos com falas realmente abjetas à sua disposição, que aludem a coisas realmente chocantes como o racismo e a homofobia, fora o fato de muitos desses candidatos serem corruptos e ligados a organizações criminosas, mesmo com este elenco à sua disposição, Ciro Gomes escolheu a honesta e intelectualmente sofisticada Márcia Tiburi para dar de exemplo do que "o eleitorado não quer". Entre todas as declarações e análises da filósofa, sempre amparadas em sólida bibliografia, Ciro Gomes pinçou exatamente aquela em que Tiburi, explicando o campo da sexologia, faz referência ao cu (usando esta palavra, e não "ânus").
Ora, ao fazer isso, Ciro Gomes me permite levantar duas hipóteses que não se excluem entre si, complementam-se:
1) A primeira é a de que, sabendo que Márcia Tiburi, Manuela D'Ávila, Maria do Rosário, Érica Kokay e eu fomos transformados, por meio de calúnias, deturpações e notícias mentirosas, em inimigos da "moral e dos bons costumes" da comunidade evangélica neopentecostal, terreno do bolsonarismo. Sabendo disso, Ciro Gomes usou Márcia Tiburi, de propósito, para "abrir diálogo" com esse setor conservador e anti-intelectual da sociedade brasileira; ou seja, ele está sendo oportunista e falso-moralista com o objetivo de ampliar seu eleitorado usando a filósofa como escada. Nesse sentido, já-já ele estará fazendo referências negativas a mim também.
2) A segunda hipótese é a de que Ciro Gomes está, como outros esquerdo-machos brancos, realmente preocupado com o abalo que as chamadas "pautas identitárias" produziram na cena política (e, em especial, no campo das esquerdas, que as abriga). Habituados a falar por nós –mulheres em geral, LGBTs e negros– sem nós, e a apenas nos usar como escadas para chegarem ao poder, os esquerdo-machos estão desesperados diante de nossa decisão de falarmos por nós mesmos e dividirmos, com eles, os espaços de poder. Esse desespero de tintas racistas, homofóbicas e machistas busca disfarçar-se na forma da "preocupação com o que é mais importante para as esquerdas agora" e na forma da acusação de que "as lutas identitárias estão jogando o eleitorado para a direita e a extrema-direita". Balela!
Na verdade, tirando a suposta preocupação com a desigualdade social, os esquerdo-machos são muito parecidos com os machos da direita e da extrema-direita no que diz respeito à real equidade de gênero e à cidadania plena de LGBTs e negros. Como alguém pode desejar reduzir as desigualdades sociais sem levar em conta as desigualdades raciais e de gênero? Como alguém pode se dizer realmente preocupado com a pobreza sem levar em conta que, dentre os pobres, os pretos sofrem mais em função do racismo que pesa sobre eles, e que, entre os pretos pobres, mulheres e LGBTs estão mais vulneráveis por causa do machismo e da homofobia? Como pensar em desigualdades sem levar em conta essas questões identitárias?
Colocar de lado ou mesmo tentar silenciar os movimentos feministas, de LGBTs, anti-racistas e ambientais neste momento, sob a desculpa esfarrapada de que "a maioria do eleitorado não está preparada para lidar com essas questões agora", não passa de oportunismo covarde e/ou de cumplicidade tácita com o racismo, o machismo e a homofobia.
Se vamos falar em união do campo progressista, não podemos começar aceitando –ou passando pano para– essa cumplicidade vil. O coronel Ciro Ferreira Gomes fique sabendo que, nesse caso, eu concordo com o filósofo Vladimir Safatle: chega de diálogo, devemos pensar então em ruptura! Não vou estar ao lado de quem age como a direita e a extrema-direita, mas com uma máscara de aliado.
No mais, a aversão de Ciro Gomes à reflexão sobre o cu feita, en passant, por Márcia Tiburi, não passa, por um lado, de uma ignorância sobre o fato de que outros grandes pensadores já se dedicaram a essa reflexão ao longo dos séculos –como, por exemplo, o Marquês de Sade, em "Filosofia na alcova", de 1795, e Georges Bataille, em "A história do olho", de 1928– e, por outro lado, de uma superfície opaca que esconde um desejo.
O cu é uma obsessão dos machos heteros e de seu patriarcado. Estes inclusive converteram o sexo anal –mesmo entre uma mulher e um homem– em um tabu. Mais: transformaram a penetração anal num insulto. Isto porém só revela o quanto eles são assombrados por ela.
Por isso, eu não vou, ao fim desse texto, mandar Ciro Gomes tomar no cu por ter insultado covardemente Marcia Tiburi e a agenda dos movimentos sociais de minorias. Não vou porque tomar no cu com consentimento é bom e a gente só manda tomar lá quem a gente gosta!
Sobre o autor
Jean Wyllys é escritor, jornalista, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, criador, roteirista e apresentador do Cinema em Outras Cores e ativista de direitos humanos. LGBT com orgulho de si, exerceu dois mandatos como deputado federal e é cidadão do mundo.
Sobre o blog
Um blog que trata das diferentes expressões das políticas, identidades, afetos e artes que nascem das ou impactam as relações humanas. E também os espaços e ambientes em que estas se dão.