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Um canto de amor

UOL Noticias

02/09/2019 14h56

Exposição em Paris faz retrospectiva do cinema "em outras cores". (Blog do Jean Wyllys/UOL)

 

No momento em que o presidente da França, Emmanuel Macron, responde com inteligência, cultura política e elegância à estupidez, incompetência e misoginia do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, expondo, ao mundo, o abismo que os separa; neste momento, a prefeitura de Paris abriga uma exposição que apenas reforça o quanto a cultura política francesa atual pretende servir de trincheira contra o fascismo que retorna: trata-se de "Champs D'amours – 100 ans de cinéma arc-en-ciel" ("Campos dos Amores – 100 anos de cinema arco-íris", em tradução livre).

Com cartazes, fotografias, retratos, instalações, trechos de filmes e objetos, como cadernos de anotações, esboços de roteiros e storyboard, a exposição busca contar a história dos cem anos do "cinema em outras cores", tomando, como marco inicial, o filme alemão "De autre que les autres" ("Diferente dos outros", em tradução livre), de Richard Oswald, de 1919, e abarcando produções de diferentes países, entre os quais, o Brasil, onde, agora, em decorrência de uma portaria do presidente fascista Jair Bolsonaro, o estado está proibido de financiar filmes com temas relacionados a LGBTs.

Estão na exposição, por exemplo, "Bixa Travesty", de Claudia Priscilla e Kiko Goifman, estrelado por Lyn Da Quebrada; "Madame Satã", de Karim Ainouz, cujo novo filme, "A Vida Invisível", acaba de ser selecionado pela Academia Brasileira de Cinema para representar o Brasil na disputa pela indicação ao o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro; e "O Beijo da Mulher Aranha", filme de Hector Babanco, estrelado por Sônia Braga e baseado no romance homônimo do escritor argentino gay Manuel Puig.

"Champs D'Amours" busca contemplar os filmes que, ao longo desses cem anos, representaram, de diferentes formas, as pessoas da comunidade sexo-diversa e suas relações sociais e sexuais, recorrendo a estereótipos de LGBTs e seus modos de vida ora para reafirmá-los de maneira debochada ora para desconstruí-los deliberadamente, apresentando novas perspectivas sobre esta comunidade. Mas não só isso, o objetivo da exposição é, principalmente, homenagear lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais que tornaram possível esse "cinema em outras cores", principalmente as pessoas que se assumiram como tais em períodos em que esse "coming out" (este é também o título do filme de Denis Parrot) significava um estigma.

O título da exposição – "Champs D'Amours" – é, ao mesmo tempo, uma referência ao curta "Chant D'Amour" ("Canto de amor", em tradução livre), feito por Jean Genet em 1950, e a "Champs-Élyseés" ("Campos Elísios"), a mais glamourosa região de Paris.

Refletindo todas as conquistas políticas, filosofias e debates internos feitos pelo movimento LGBT, que muito recentemente incluiu, na sigla, a letra Q, de "queer" ("desviado", em tradução livre), o cartaz de "Champs D'Amours" traz um close de Divine, a drag-queen fechativa que estrela "Pink Flamingos", de John Waters, um clássico da contra-cultura gay.

Esta exposição não é apenas uma efeméride. Trata-se de um ato político de resistência neste momento em que a extrema-direita mais homofóbica retorna com relativa força em todo mundo.

O filme tomado como marco inaugural desses cem anos – "Diferente dos outros" – denunciava, em 1919, o Parágrafo 175 do Código Penal alemão que criminalizava a relação sexual entre homens. Este dispositivo legal durou de 1871 a 1994. Sim, até meados da década de 1990, a Alemanha criminalizava a homossexualidade. E foi este Parágrafo 175 que permitiu que os nazistas mandassem mais de 50 mil homossexuais aos campos de concentração.

Essa história medonha pode se repetir a qualquer momento se não tivermos memória, se as novas gerações não souberem do que se passou e se não resistirmos de todas as formas ao mal que a produziu (um mal que está de volta!). E não há memória nem resistência sem o cinema. E não há cinema sem os criadores LGBTs. Por isso, "Champs D'Amours" é tão importante e significativa.

E aproveito para comunicar aos LGBTs que fazem a sétima arte no nosso país que a nova temporada de Cinema em Outras Cores, a série que apresento no Canal Brasil, chegará em breve. Um novo canto de amor.

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Sobre o autor

Jean Wyllys é escritor, jornalista, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, criador, roteirista e apresentador do Cinema em Outras Cores e ativista de direitos humanos. LGBT com orgulho de si, exerceu dois mandatos como deputado federal e é cidadão do mundo.

Sobre o blog

Um blog que trata das diferentes expressões das políticas, identidades, afetos e artes que nascem das ou impactam as relações humanas. E também os espaços e ambientes em que estas se dão.

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