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A vida não é uma novela

Jean Wyllys

12/07/2019 19h05

A dramaturga Gloria Perez durante lançamento de novela da Globo (Roberto Filho/Brazil News)

A novelista Gloria Perez festejou, em seu perfil oficial no Twitter, o retorno do "Pavão Misterioso", perfil apócrifo criado para espalhar mentiras e falsificações grotescas contra o editor do site de notícias The Intercept, Gleen Greenwald, seu esposo e deputado federal David Miranda e contra mim (recentemente o tal Pavão incluiu em suas narrativas mentirosas também os deputados federais Marcelo Freixo e Paulo Pimenta).

Os crimes de calúnia e difamação perpetrados contra nós por esse perfil apócrifo, cuja volta ao Twitter foi festejada por Gloria Perez –perfil que é extensão da nojenta campanha baseada em fake news que deu a vitória a Bolsonaro, seus filhos e outros políticos do PSL–, devem-se ao fato de o Intercept estar denunciando, numa série de reportagens ainda inconclusas, o envolvimento do ex-juiz e agora ministro da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro, e de membros do Ministério Público Federal que integram a Operação Lava Jato, numa conspiração antirrepublicana para prender Lula sem provas dos crimes de que lhe acusam, impedindo-o de participar das eleições de 2018, na qual aparecia como líder absoluto nas pesquisas de intenções de votos.

Como está evidente que essa conspiração favoreceu Bolsonaro, tanto é que este presenteou Moro com um ministério, a rede criminosa de produção de fake news que se moveu para elegê-lo agora se move em defesa de seu ministro.

Posso imaginar que, com essa queda moral do ministro da Justiça, que figurava no imaginário de antipetistas e bolsonaristas como o "herói do combate à corrupção no Brasil" (embora fosse evidente para qualquer pessoa inteligente e atenta que se tratava de alguém muito aquém desse epíteto), Gloria Perez se viu desnorteada. Qualquer pessoa que tenha suas falsas certezas derrubadas e se decepcione com falsos heróis deveria fazer uma autocrítica e se desculpar com quem estes –falsas certezas e heróis– tenham prejudicado.

Esta, entretanto, não tem sido a postura de Gloria Perez nem da maioria dos integrantes do "Morobloco". Para tentar manter seu herói e suas falsas certezas de pé, ou seja, para não reconhecer publicamente seu equívoco político, a novelista optou por festejar a atuação de um perfil apócrifo e criminoso no Twitter contra o responsável pela derrubada da farsa.

Podemos dizer, inclusive, que Gloria Perez decidiu recorrer ao expediente de seu ídolo, Sergio Moro, para quem, segundo nos revelou The Intercept, as regras do jogo não importam, não devem ser respeitadas quando se trata de adversários. Se, para Moro, o Código de Processo Penal poderia ser atropelado e o princípio da presunção de inocência ignorado para que atingisse seu objetivo de colocar Lula na cadeia e tirá-lo da corrida eleitoral, para Gloria Perez, sua fã e eleitora de Bolsonaro, a mentira e a falsificação podem ser usadas em defesa do ex-juiz; do contrário, ela não teria festejado a volta de um perfil especializado em destruir a reputação de pessoas honestas e honradas –entre elas, eu– com mentiras e prints de falsificações grotescas.

A atitude de Gloria Perez me chocou. Uma coisa é ser antipetista e ter votado em Bolsonaro (é um direito dela, como é meu direito ser antifascista e ter votado em Fernando Haddad). Outra coisa é festejar a calúnia e a difamação contra quem está denunciando crimes que envolvem integrantes do governo Bolsonaro. Vale tudo? Não mais regras a serem respeitadas? A verdade tornou-se uma questão de opção?

Eu sou noveleiro, todos sabem. E sempre admirei o talento de Gloria Perez. Chegamos a conversar por mensagens na época em que ela estava escrevendo "Salve Jorge". Trocamos algumas ideias sobre a distinção entre prostituição e exploração sexual e entre turismo e tráfico humano que a trama e os diálogos de sua novela precisavam fazer; e também sobre a necessidade de uma referência à exploração sexual de mulheres trans. Nessas conversas, havia um carinho e um respeito mútuo.

Logo, ao ver que ela festejou a atuação de um perfil que perpetra crimes contra mim, perguntei-me: o que teria acontecido a ela? Seria extensão do equívoco ou mau-caratismo?

Em "O Clone" e "Caminho das Índias", Gloria criou uma personagem que atuava contra os mocinhos por meio da mentira. Alicinha e Ivone, vividas respectivamente por Cristiana Oliveira e Leticia Sabatella, mobilizaram as audiências justamente porque, por meio delas, Gloria mostrava que a mentira, como meio de ascensão social e/disputa amorosa, é um veneno letal. Então, como pode alguém que abomina a mentira em sua ficção festejá-la na vida real? A novelista não consegue perceber que a pessoa por trás do Pavão age como suas odiosas personagens?

Gloria também viveu uma tragédia pessoal. Em 1992, sua filha, Daniela, à época atuando em sua novela "De Corpo e Alma", foi brutalmente assassinada pelo casal Paula Thomaz e Guilherme de Pádua. O caso mobilizou mais ainda a opinião pública porque Guilherme de Pádua atuava na mesma novela e era um galã em ascensão. Um dos expedientes a que o ator e sua mulher, Paula, recorreram durante a investigação, foi a mentira. Outro expediente foi a difamação.

Daniela Perez, filha de Gloria, durante a novela "De Corpo e Alma" (Divulgação)

A luta de Gloria foi, portanto, uma luta não só por justiça, mas pela proteção da reputação de sua filha, atacada covardemente depois de morta por aqueles que defendiam os assassinos. Guilherme de Pádua votou em Bolsonaro e defende seu governo.

Pergunto-me, com todo o respeito que tenho à memória de Daniela Perez e à dor de sua mãe, como uma experiência tão terrível não foi capaz de tornar Gloria Perez sensível à dor de quem é vítima da difamação? Será que ela não consegue se colocar na pele das vítimas do Pavão? Não consegue pensar em como se sentem os filhos de Glenn e David, os filhos de Marcelo Freixo, os filhos de Paulo Pimenta e os meus irmãos e minha mãe, vendo nossas reputações serem destruídas por falsificações?

Gloria Perez parece não se dar conta do quão formadora de opinião é para agir com tamanha irresponsabilidade e falta de empatia. E é justamente por conta do alcance de sua voz que eu estou me dedicando a ela neste texto.

Gloria não é mais uma bolsonarista sem educação formal nem recursos materiais nem subjetivos para se proteger da propaganda enganosa. A novelista é mulher inteligente, rica, famosa, viajada e com milhares de seguidores em suas redes sociais. Escreve para a emissora de maior audiência do país. Como pode agir como se estivesse convencida de que um perfil apócrifo no Twitter tem mais autoridade moral e está mais com a verdade do que um jornalista que ganhou um Prêmio Pulitzer e um Oscar?

Em suas tramas, a novelista pode punir suas vilãs mentirosas e odiosas ao final. Mas, na vida real, não há um roteirista que possa punir a própria Gloria Perez por validar publicamente um perfil que perpetra mentiras contra nós. A vida não é uma novela. Gloria precisa entender isso.

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Sobre o autor

Jean Wyllys é escritor, jornalista, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, criador, roteirista e apresentador do Cinema em Outras Cores e ativista de direitos humanos. LGBT com orgulho de si, exerceu dois mandatos como deputado federal e é cidadão do mundo.

Sobre o blog

Um blog que trata das diferentes expressões das políticas, identidades, afetos e artes que nascem das ou impactam as relações humanas. E também os espaços e ambientes em que estas se dão.

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