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O elogio da mentira

Jean Wyllys

30/03/2019 05h00

Brasil, Brasília, DF, 01/04/2014. Parlamentares e manifestantes seguram cartazes com fotos de mortos pela ditadura militar e dão as costas para o deputado Jair Bolsonaro, que não consegue discursar na tribuna, durante sessão solene no plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília (DF), para lembrar a luta pela volta da democracia e a resistência contra a ditadura. – Crédito:ANDRÉ DUSEK/ESTADÃO CONTEÚDO/AE

O presidente de uma suposta democracia pede às Forças Armadas de seu país que comemorem e celebrem a data falsa do início de uma ditadura militar que assassinou, torturou, baniu e eliminou fisicamente milhares em todo país.

Isto parece o enredo de algum romance de literatura fantástica escrita por Gabriel García Marquez, Jorge Luís Borges, Jorge Amado, Isabel Allende ou outro escritor latino-americano indignado com a incompetência da América Católica e agora também Evangélica, sempre espoliada por ridículos tiranos. Mas não é. É a realidade brasileira.

A postura de Jair Bolsonaro em relação ao aniversário do golpe militar no Brasil não deveria chocar ninguém. Nos quase trinta anos em que esteve no Parlamento, ele pouco fez além de reiteradamente elogiar o terrorismo de estado praticado pelos ditadores e seus aparatos, e proferir discursos de ódio contra minorias sexuais e étnicas e contras os direitos humanos. Muito recentemente assumiu em público sua admiração quase libidinal por fascínoras como Augusto Pinochet, ditador chileno, e Alfredo Stroessner, o fascista que oprimiu o Paraguai por mais de três décadas. Pesa sobre este último, inclusive, as acusações de ter feito vários estupros e explorado sexualmente crianças. E bem antes desses acintosos elogios aos ditadores de outros países da América do Sul, lá no ano de 2016, Bolsonaro dedicou seu voto na sessão que impediu a presidenta Dilma Rousseff ao homem que a torturou durante a ditadura militar, o coronel Brilhante Ustra, um psicopata que perpetrou vários crimes contra humanidade.

Sim, há algo de doentio em Jair Bolsonaro. Mas ninguém minimamente informado pode fingir que não sabia disso.

Dias malditos

Custa-me nada repetir: o presidente Jair Bolsonaro é um inimigo da democracia engendrado por ela mesma. Esse fascista sempre usou o direito à liberdade de expressão, garantido apenas na e pela democracia, para conspirar e atentar contra esta. E só começou a ser seriamente enfrentado como deveria quando eu cheguei à Câmara Federal. Não por acaso esse sujeitinho me odeia tanto.

A decisão de Bolsonaro de pedir às Forcas Armadas que celebre o golpe militar de 1964 é um ataque violento a uma memória que sequer começou a ser construída e a um luto que está longe de ser trabalhado; é a negação do direito das novas gerações de resistirem à tirania e à opressão no futuro por meio das lições do passado.

À minha geração, já era negado, nas escolas, o direito à memória, e nos era imposta uma narrativa mentirosa sobre os governos militares.

Só no final do ginásio (hoje chamado Ensino Fundamental) eu pude saber, pelos padres da Diocese de Alagoinhas e por um livro em especial que encontrei na biblioteca da casa paroquial ("Brasil: Nunca Mais", da editora vozes), as verdades sobre aqueles dias malditos (mal-ditos)!

Do choque ao desespero

Só a partir daí eu pude interpretar o que nos era imposto contra nossa vontade. Todos os dias, antes de entrarmos para as salas de aulas, éramos obrigados a cantar o Hino Nacional enquanto a Bandeira do Brasil era hasteada. E nas aulas de "Educação Moral e Cívica" – disciplina que nós chamávamos simplesmente de "emecê" – aprendíamos que, em 31 de março de 1964, aconteceu, no país, uma revolução conduzida pelas Forças Armadas que "nos livrou do mal do comunismo". Uma narrativa mentirosa, enganadora, desmentida por documentos históricos e testemunhos, mas que agora ressurge na boca do presidente da república eleito graças ao jogo democrático. Uma desgraça!

Como alguém pode ser capaz de mentir e mentir tão descaradamente dessa forma sobre um passado recente do qual muitas testemunhas estão vivas e ainda com sequelas, principalmente ocupando o cargo de presidente da república?

As verdades da ditadura civil-militar que muitos de nós conhecemos hoje – a censura, os conflitos, as torturas, os assassinatos, os exílios – mal chegaram à maioria da população, e já há quem queira de novo sufocá-las. Se este empenho partisse de algum fascista saudosista do horror ou mesmo de algum militar assassino não satisfeito apenas com a impunidade, como era o caso de Brilhante Ustra, já seria chocante para qualquer pessoa honesta intelectualmente. Mas quando sabemos que esse empenho vem de um presidente da república que ao mesmo tempo quer convencer o resto do mundo de que é democrata, a situação passa do choque ao desespero.

Que futuro poderá se construir quando se nega ou se mente sobre o passado?

Sabemos hoje que, durante a ditadura militar, o perigo rondava o conhecimento, e que, por isso, muitos oscilavam entre saber e fingir que não sabiam ou esquecer. O historiador francês Jacques Le Goff afirma que é preciso interrogar-se sobre os esquecimentos. "Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos documentos e das ausências de documentos."

Nesse sentido, honrando a tradição dos fascínoras e assassinos do passado pelos quais expressa admiração pública, reproduzida pelos sicários e tiranos do presente com os quais tem relação, Bolsonaro faz o contrário do que propõe o historiador francês: impõe o silêncio por meio do festejo cínico e do escárnio com a dor dos outros, e sobretudo por meio de narrativas mentirosas.

As verdades sobre os porões de tortura, voos da morte, assassinatos, sequestros, a desumanidade dos métodos do Estado para conter a resistência é certamente terrível, sobretudo para quem sobreviveu aos fatos. Mas são necessárias. Eu tenho direito a elas! Minha geração e as que vieram depois têm direito a elas!

Sabemos que não poderemos reconstruir tudo, mas a utopia de tudo saber a respeito daquelas páginas infelizes de nossa história deve servir como um programa, um horizonte e uma advertência para o futuro.

O elogio à mentira feito pelo presidente Bolsonaro é um crime.

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Sobre o autor

Jean Wyllys é escritor, jornalista, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, criador, roteirista e apresentador do Cinema em Outras Cores e ativista de direitos humanos. LGBT com orgulho de si, exerceu dois mandatos como deputado federal e é cidadão do mundo.

Sobre o blog

Um blog que trata das diferentes expressões das políticas, identidades, afetos e artes que nascem das ou impactam as relações humanas. E também os espaços e ambientes em que estas se dão.

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