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Jean Wyllys

O mal boçalizado

Jean Wyllys

05/06/2019 17h15

Edilásio Barra Jr., conhecido por Tutuca (Reprodução)

 

Edilásio Barrra Jr., o Tutuca, é só mais um exemplar dos boçais bolsonaristas que praticam o mal contra os outros com o propósito de levantar vantagens materiais. Esse sujeito está ou estava cotado para assumir a Secretaria de Audiovisual do surreal governo Bolsonaro.

Quando anunciada a indicação de seu nome, a imprensa partiu em busca do currículo ou das experiências que explicassem e justificassem o fato de o governo Bolsonaro desejar pôr, sob a responsabilidade de Tutuca, área tão estratégica para a economia criativa de um país como o Brasil, extenso como um continente, com mais de 200 milhões de habitantes e uma singular diversidade cultural –economia que, sob gestão competente, poderia gerar milhares de empregos e renda.

O resultado da busca pelas credenciais de Tutuca não surpreendeu ninguém que conheça o quanto faltam, aos ministros e secretários do núcleo duro desse governo em deriva fascista, um nível mínimo de formação intelectual, além de habilidades e competências para conduzirem bem as tarefas que lhes foram delegadas.

E se, por um lado, faltam educação formal comprovada (e não inventada, como as mentirosas passagens por Harvard), habilidades e competências, por outro, sobram mentiras sobre currículos e crenças em paradigmas superados pelo menos desde o final da Idade Média, como o geocentrismo, a ideia de que a Terra é plana, e fé em mitologias religiosas –a de que Deus criou a Terra em seis dias há mais ou menos 6.000 anos, por exemplo– que contrariam a Teoria da Evolução das Espécies, consenso na comunidade científica mundial desde que a Modernidade emergiu. Também sobram delírios psicóticos e oportunismos baratos. Tutuca está, portanto, em completa consonância com o restante do elenco.

E uso aqui a palavra "elenco" de propósito, já que Tutuca teria, em seu currículo, trabalhos como figurante em telenovelas e como apresentador de um programa de bajulação de subcelebridades que registrava traço de audiência na CNT, na Band e na Rede TV!, onde, segundo ele, a atração teria sido exibida.

Para coroar essa experiência inigualável em políticas públicas para o audiovisual, ele também fundou uma igreja evangélica com o criativo nome de Igreja Continental do Amor de Jesus (qualquer semelhança com Igreja Universal do Reino de Deus ou com Igreja Mundial da Graça de Deus terá sido mera coincidência, claro!). Pequenas igrejas, grandes negócios para quem fracassou no objetivo de ser famoso; de ser celebridade; de ser a estrela, e não sua mera poeira.

A notícia da indicação de Tutuca para a Secretaria do Audiovisual trouxe à tona também o fato de que ele perpetrou um crime contra a minha honra e a de Manuela D'Ávila: ele compartilhou em seu perfil no Instagram, para mais de 35 mil seguidores, a calúnia de que Manuela D'Ávila e eu seríamos os mandantes do ataque a Bolsonaro durante as eleições; que teríamos pago a Adélio Bispo de Oliveira para esfaquear o candidato do PSL e que, por isso, o cerco estava se fechando sobre nós. Uma calúnia com direito a fotos nossas.

Como uma pessoa que se considera "inteligente" e que supostamente trabalhava com a imagem de pessoas públicas em um programa de televisão divulga uma calúnia dessas se não for por pura má-fé, mau-caratismo e/ou pelo objetivo deliberado de tentar destruir nossas reputações, a minha e a de Manuela D'Ávila?

Questionado sobre esse crime em entrevista para a BBC, Tutuca se saiu com um ardil típico dos covardes bolsonaristas que difamam pessoas honestas e honradas por meio de calúnias e fake news e, quando descobertos, desejam se safar:

"Não afirmei nada, não. Não tem nada afirmado. Aquilo foi matérias que saíram em várias revistas e blogs e sites que eles eram…
(…)
Suspeitos, suspeitos. E aí nós compartilhamos e pronto, porque nós somos de direita e naquele momento era isso que se falava. Ponto final, só isso".

Só isso, Tutuca? Não! Você tinha e tem noção dos danos que essa calúnia causaria –e causou– em minha vida, na de Manuela e nas das nossas famílias, e exatamente por isso a perpetrou. E é justamente por estarmos conscientes de que você sabia do mal que estava boçalizando é que vamos processá-lo e exigir reparação moral e material por esses danos.

Gostaria que o repórter da BBC tivesse perguntado a esse sujeito: E por que o senhor fechou suas redes sociais assim que descobriram o que senhor fez? O que o senhor tem a esconder? O senhor não tem noção do que é uma fake news? Que veículo sério e de credibilidade deu a notícia falsa que o senhor espalhou? Pensou nos danos à vida dos dois?

Mas o repórter não fez, porque a imprensa e a Justiça brasileiras ainda não levam a sério os danos produzidos às suas vítimas pelos caluniadores e difamadores na internet. Na Espanha, um youtuber chinês que vive lá e mantinha um canal chamado ReSet –no qual, por meio de vídeos dirigidos à sua enorme audiência, humilhou pessoas em situação de rua, oferecendo-lhes pão recheado com fezes de gato e biscoito Oreo com pasta de dente, gravando suas reações sem consentimento– foi condenado pela Justiça espanhola a ser banido da plataforma (YouTube) pelos próximos cinco anos, sem direito a retornar à cena do crime (à plataforma digital do Google) de qualquer outra forma nesse período, além de indenizar suas vítimas com o equivalente a R$ 88 mil e mais 15 meses de prisão (que ele não precisará cumprir por não ter antecedentes criminais).

A imprensa espanhola deu ampla cobertura ao caso. Se, no Brasil, Judiciário e Imprensa fossem mais sensíveis ao mal banalizado pelas fake news e calúnias como o são os espanhóis, o bolsonarismo não existiria.

A filósofa judia Hannah Arendt cunhou a expressão "banalidade do mal" quando analisou o julgamento de Eichmann, um dos nazistas levados ao tribunal. Com essa expressão, a filósofa se referia ao mal que não está enraizado (não é radical) nem praticado como atitude deliberadamente maligna. A banalização do mal é feita pelo ser humano comum que não se responsabiliza pelo que faz de ruim ou acha que o que faz de ruim não tem consequências para os outros; o sujeito que não reflete, não pensa.

Arendt se referiu a Eichmann como uma pessoa tomada pelo "vazio do pensamento", como um imbecil que não pensava, que repetia clichês e era incapaz de um exame de consciência –e que, por tudo isso, banalizava o mal que praticava.

A banalidade do mal pode, portanto, ser feita por qualquer pessoa carente de pensamento crítico e, por isso, insensível à dor do outro e às consequências de seus atos.

Esse pensamento de Arendt, contudo, não se aplica a Tutuca. Este não é o tipo de imbecil que a filósofa descreve (muitos eleitores de Bolsonaro o são, é verdade, mas não Tutuca). Alguém que funda uma igreja evangélica nos moldes da Iurd, sabe bem o que está fazendo; sabe quando está perpetrando o mal.

O caso de Tutuca está mais para o que a escritora Eliane Brum, em irretocável texto publicado em El País, chamou de "boçalidade do mal".

Se, por um lado, boa parte dos eleitores de Bolsonaro que seguem lhe defendendo, apesar de seu governo estar empurrando o país para a fossa (em todos os sentidos dessa palavra), banalizam o mal, por outro, os membros do núcleo duro desse governo –incluído aí Tutuca, cuja adesão ainda não se consumou– boçalizam o mal: sabem que o estão praticando e o fazem porque gostam de fazer os outros sofrerem.

Sobre o autor

Jean Wyllys é escritor, jornalista, mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, criador, roteirista e apresentador do Cinema em Outras Cores e ativista de direitos humanos. LGBT com orgulho de si, exerceu dois mandatos como deputado federal e é cidadão do mundo.

Sobre o blog

Um blog que trata das diferentes expressões das políticas, identidades, afetos e artes que nascem das ou impactam as relações humanas. E também os espaços e ambientes em que estas se dão.

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